quinta-feira, 5 de julho de 2018

Os dois e o muro da casa branca


O papel envelhecido permanecia em suas mãos mesmo não havendo mais luz suficiente para ver a maioria dos detalhes. As bordas já estavam escurecidas e comidas e havia um grande friso, já bastante gasto, com pequenos descascados. Após um silêncio cortado por um suspiro, o olhar buscou o ponto no céu onde brilhava o Sol algumas horas antes, quando o rapaz se pusera sentado no gramado deliciosamente fresco. Só encontrando estrelas, o olhar voltou-se novamente para o papel.
Já fazia tempo que a fotografia não estava mais em seu melhor estado, mas não seria abandonada tão logo. As duas pessoas retratadas, um casal, estavam de pé, lado a lado na frente de uma casa. O homem era alto, com o rosto já um tanto rechonchudo - de fato ele sempre fora assim mesmo durante a infância – com um par de pequenos olhos arredondados apertados entre as bochechas. A mulher, um pouco mais velha, tinha um olhar cansado. Era magra, magra demais para a época, mas depois, quando ganhou um peso, viu a sua antiga magreza virar uma tendência estética. Ela jamais aceitara seu corpo e jamais se perdoaria em ter se deixado ficar como ficou.
Os dois estavam na frente da casa para onde se mudaram logo depois de se casarem. Depois de juntarem dinheiro por anos, conseguiram reformar o imóvel e, para comemorar, pediram para o Cláudio, um primo de segundo grau dela, o único na cidade que tinha uma câmera fotográfica, fazer um retrato com os dois proprietários orgulhosos de sua ‘nova’ casa. Posaram em pé, com os muros branquinhos, novos em folha, em suas costas, com a porta, pintada com um esmalte vermelho maravilhoso, quase toda encoberta por eles. E aí estava a cena.
Já aceitando a falta de condições de observar, ele dobrou a foto, reforçando aquele friso no meio, e a guardou entre a capa e a primeira página de uma agenda que carregava na mochila. Estava tarde e o caminho até a cidade ainda seria longo. Olhou para os lados para ver se ela estava de olho, mas ela já esperava na estrada, arrumando o banco da sua bicicleta para seguir viagem.
Chegando próximo a ela, ele pega a sua bicicleta e ambos seguem em direção à cidade em um ritmo tranquilo. A estrada, bastante iluminada pelo céu estrelado, sempre reservava momentos interessantes para os dois. Sempre que precisavam de um tempo do ritmo urbano, pedalavam até as colinas que ficam a oeste da cidade, para ficarem quietos olhando a amplidão de tudo em volta. Porém nos trajetos, os quase quarenta minutos eram preenchidos por conversas que pareciam intermináveis.
Nesta noite, pelo contrário, os dois pedalavam em silêncio. Ele não estava muito inspirado para começar um diálogo (aquele papo barato que não leva a lugar algum não era muito a praia deles), ela parecia concentrada nos seus pensamentos. A cada tanto, ele olhava para o lado, na esperança de que ela começasse, para que o trajeto continuasse normalmente. Porém ao ver a falta de reação, ele começou a ficar preocupado. Ela era do tipo de pessoa que por vezes está quieta, apenas para bolar aquela pergunta capciosa, e ele não tinha muito pique para algo daquele jeito, naquela hora.
E, para o azar do rapaz, isso era exatamente o que a moça tinha em mente. Na metade do trajeto ela vira pra ele, com uma cara que não dizia nada:
- Mas por que diabos você tem passado todo esses dias com essa foto? Já faz um mês. São seus avós, não?
- Sim, são eles sim. Respondeu ele. Resposta esta seguida por um silêncio sepulcral, que frustrou profundamente a moça.
Era uma pergunta complicada. Realmente fazia um mês que ele carregava a fotografia por todo canto. De quando em quando, ele a pegava de sua agenda e observava em silêncio, como se tentasse achar alguma coisa escondida naquela imagem, igual aqueles livros de suspense que encontram mensagens escondidas em fotografias antigas e isso é o ponto de partida para grandes histórias. Ele simplesmente nunca falava sobre isso, e ela cultivara em si uma curiosidade, que se transformara em inquietação.
Alguns minutos depois, quando já conseguiam ver a silhueta discreta da cidade, ele simplesmente parou de pedalar e ficou para trás, com os pés no chão e o olhar no guidão. Ela, irritada, voltou pedalando e encontrando-se com ele.
- O que acontece com você? Fica aí quieto, não responde as coisas que te pergunto e agora vem com essa história de ficar parando no caminho!
Ela falava alto enquanto lutava pra recuperar o fôlego, tarefa que se tornava mais difícil à medida que ela ficava nervosa com a falta de resposta dele.
- Dá pra falar alguma coisa, nem que seja um “não tô muito afim de falar disso”, heim?


- Sabe. Começou ele, dando alguma esperança para ela.


- DESEMBUCHA, HOMEM DE DEUS!

- Sei lá, sabe… Já foram tantos anos que eles foram embora, e, mês passado me peguei pensando neles pela primeira vez desde então. E estranhei o fato de não ter feito isso antes. Eu gostava tanto deles e simplesmente não sentia saudade deles. Não daquele poético de ‘não sentir saudade por senti-los sempre do meu lado’. Mas do jeito de simplesmente não pensar neles. E isso é estranho.

Veio mais um silêncio sepulcral por alguns instantes, quebrado pelo próprio rapaz, que tentava concluir de alguma forma aquele raciocínio.

- É pra ver se consigo um dia ter saudades deles.

E voltou a pedalar, deixando a menina calada para trás. Ele viria a alcançá-lo alguns quilômetros adiante. Porém dessa vez não quis puxar conversa. Olhava para frente, para ele e de volta para frente. Havia ainda muito para digerir.  


quarta-feira, 9 de maio de 2018

Anonimato

O ônibus estava cheio devido ao horário. Todos os assentos estavam ocupados com pessoas e com casacos que respingavam. Poças de água formavam-se dos respingos e da chuva que conseguia encontrar alguma fresta nas janelas precárias do coletivo. Ao menos uma alma bondosa (que ocupava um corpo suficientemente alto) fez a gentileza de fechar a abertura de ventilação do teto. Afinal, mesmo que não houvesse uma tempestade torrencial como essa, o céu realmente não seria uma real atração visual.
A falta de saturação do céu lá fora era claramente refletida no estado de espírito dos que estavam dentro. O dia havia sido difícil, o tempo estava extremamente abafado, a respiração era pesada e, quando não chovia, havia aquele período quente que servia apenas para as poças se transformarem em um bafo quente e insuportável. De fato esse era um clima recorrente naquela região, especialmente no centro da cidade, porém era difícil de ver alguém que houvesse se adaptado e se sentisse confortável com aquela mistura desgostosa de suor e chuva que se espalhava pela pele. A repetição dessa condição durante a semana apenas tornava mais simples de compreender o estado de espírito de todos que se deixavam pesar sobre os bancos, sem fazer o mínimo de esforço para manter um mínimo de compostura.
As muitas paradas, alternadas aos muitos semáforos fechados, criavam um ritmo constante que embalava os passageiros enquanto o ônibus seguia na direção sul da cidade. Seriam cerca de uma hora e meia para chegar ao terminal, onde todos sairiam para tomar cada um seu rumo em outros ônibus.
Após cerca de um terço de caminho andado, o ônibus para em uma estação quase vazia. Um casal entra com passos apressados, num primeiro olhar, fugindo da chuva. Porém nos detalhes era possível ver algo de nervoso. Os dois pararam de frente para a porta olhando para o outro com uma tensão clara no olhar e, depois de um silêncio sacramental, a mão esquerda de um voa até esbofetear impiedosamente a face do outro, em um som curto, abafado e estridente.
Após outro silêncio, conveniente para digerir a cena, começou a gritaria. Entre os "Você não deveria ter feito isso", os xingamentos, as novas tentativas de tapas que terminavam em um agarrando o outro, novos passageiros entravam e se juntavam à plateia silenciosa que não ousava interferir. O ônibus chacoalhava ao longo da avenida alheio a tudo que acontecia dentro, alheio às "verdades" que eram ditas, aos objetos jogados um no outro que se acumulavam ao chão, à violência no olhar e no falar, aos olhares incrédulos de todos os presentes. No final dela havia um grande ponto de ônibus, o último antes da parada final.
Ao abrir das portas, uma pequena multidão rapidamente preencheu todo o espaço disponível no corredor engolindo o casal com seus corpos e roupas molhadas. O cheiro da umidade preencheu o olhar enquanto a centena de rostos genéricos se somavam às dezenas dos anteriormente presentes observando o nada que havia restado.
Nenhuma palavra que foi dita enquanto o ônibus percorria lentamente seu caminho, fazia a volta necessária no terminal para estacionar no sentido contrário para depois tomar todo o caminho de volta.
Ao estacionar, as portas se abriram e como comportas de uma represa e o mar de gente que se apertava em pé se esparramou para fora do coletivo. Eles rapidamente tomaram seus caminhos pelos corredores, passagens subterrâneas e diversas plataformas. Entravam em filas, nas pequenas lojas localizadas por todo o terminal. Junto com a multidão o casal desapareceu tão rapidamente quanto apareceu. O momentâneo silêncio entre a saída apressada dos que estavam em pé e o impeto letárgico dos que estavam sentados de se levantar foi de certa forma estranho. Nenhum deles jamais havia visto estas duas pessoas, que não eram frequentadores quotidianos desta linha. Talvez aparecessem de novo, num dia próximo, para que fosse possível deduzir um desenrolar para todo aquele papelão. Talvez seria possível saber quem são. Seus nomes, de onde vieram, o que faziam da vida, o motivo da briga. Seria divertido poder julgar e apontar um dedo para um culpado.
Talvez, porém eles jamais aparecessem nessa linha novamente. Talvez estivessem resolvendo algum problema na região, ou mesmo na cidade, e não tivessem nenhuma relação com esse trajeto. Permaneceriam para sempre como o casal de loucos que entrou no ônibus enquanto resolvia suas pendências de forma nada civilizada. Permaneceriam para sempre como duas pessoas entre tantos milhões de outros, cujos nomes jamais saberemos. Pode ser que um dia aleatório, depois de tanto tempo entrem no mesmo ônibus, no mesmo horário, de mãos dadas, escolham um assento tomem seu rumo, vestido com o belo traje do anonimato, por trás do qual podemos ser todos um tanto loucos, livremente.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Costumes

Mais uma terra distante, mais um povo isolado de outras civilizações.

O curioso é que aquele não era um lugar novo para o Viajante. Dois séculos antes, aquelas terras eram desertas. Agora, pessoas viviam em meia dúzia de cabanas de folha de palmeira à beira do lago. O Viajante os observava do alto de um morro, se escondendo atrás de uma pedra larga para não ser visto.

Só depois de muito tempo ele notou que uma mancha azul se movia na periferia da sua visão. Olhou para cima e o borrão se materializou na imagem nítida de uma moça com longos cabelos azuis sentada na pedra, abraçando os joelhos e observando-o com a cabeça inclinada como se não tivesse nenhuma outra preocupação no mundo. E talvez não tivesse mesmo.

— Vão te ver aí, Shuei! — o Viajante sussurrou, encolhendo-se mais do que era necessário para se manter escondido.

— Eles não podem me ver — ela respondeu com uma voz que soava como as ondas calmas do mar se quebrando aos pés de um penhasco.

— Ah é. Esqueci.

Shuei, como ele a chamava, era a personificação das águas e só aparecia para quem queria. Não sabia se ela tinha um nome original, mas numa das terras que visitou a chamavam de Shuei, e o som lhe agradava.

Ficaram observando em silêncio os homens do pequeno assentamento em seu ritual crepuscular, tentando entender o que toda aquela dança e gritaria em torno da palmeira significava. Fora do perímetro dos dançarinos, tochas altas foram acesas e fincadas no chão, e atrás delas as mulheres e crianças observavam com solenidade.

Em um dado momento, um dos homens abraçou a árvore e tentou subir nela sem o auxílio de equipamento algum. Os gritos agudos se intensificaram, parecendo incentivar o escalador, mas ele não passou da metade da árvore. Um após o outro, todos se revezaram na tentativa de escalar a árvore até que um deles finalmente conseguiu alcançar o topo da palmeira. De lá de cima ele cortou os cachos pesados de coquinhos e as mulheres, até então apenas nas margens daquela dança eufórica, se aproximaram com movimentos graciosos e recolheram os frutos que caíam no chão. O provedor de coquinhos foi presenteado com um colar de contas coloridas — os quais ele tinha em maior quantidade que os outros — e em seguida todos retornaram à calma rotina da noite, se preparando para o dia seguinte.

— Todo esse rebuliço por alguns coquinhos…

— A vida deles giram em torno daquela palmeira — Shuei lhe informou. — Com ela são capazes de montar seus abrigos. Dela eles tiram comida e preparam uma bebida especial que consideram sagrada. Depois que saem para caçar, é ela que lhes indica o caminho de casa quando todos os horizontes parecem um borrão verde uniforme. Aquela palmeira lhes representa segurança, sustento, família e a própria vida. Da mesma forma que a caixa de madeira na sua mochila representa essas coisas para você.

— Você fica me observando? — o Viajante perguntou, mais curioso do que ofendido.

— Eu observo tudo quando estou presente.

A tal caixa de madeira que ele carregava consigo desde que deixara o conforto do lar continha as memórias de sua avó. Sempre que sentia saudades de casa, ele a abria e se lembrava da mulher que o criou, da vida de aventuras que ela viveu e dos sonhos que realizou. Quando revirava o conteúdo de desenhos, fotos e cartas, o Viajante lembrava que tinha um nome e um passado, lembrava que tinha sonhos. Aquele era o pequeno ritual que o mantinha sempre na estrada há séculos. Aquele era o pequeno ritual que guiava a sua vida.

Então, olhando pensativa para o pequeno vilarejo, Shuei concluiu: — Pessoas se apegam aos detalhes mais estranhos. Mas é isso que dá a eles significado e poder.

— O que aconteceria se deixássemos de lado os nossos pequenos rituais?

— Você estaria disposto a abrir mão da caixa de madeira para descobrir?

Aquela pergunta deixou o Viajante atônito e embasbacado, buscando palavras no ar como se tentasse capturar borboletas com uma rede furada. Não que ela fosse difícil de responder. O problema era que a sua resposta seria um sonoro e indignado "Nunca!", embora em suas pretensões filosóficas ele esperasse que seus instintos fossem mais elaborados e profundos que aquela curta palavra. Sempre precisou viajar leve, carregando pouco mais que a roupa do corpo e o mínimo de apetrechos que o ajudariam a sobreviver entre cidade, por isso sempre havia se percebido como uma pessoa bastante desprendida de bens materiais. Porém, para ele era impensável se separar da caixa de memórias da avó. Ao mesmo tempo que lhes atribuía um significado que ia além da sua mera utilidade material, aqueles papéis e lascas de um passado que não lhe pertenciam definiam quem ele era no momento presente.

Com um pouco de assombro e vergonha, respondeu com sinceridade à pergunta da amiga: — Não sei. Certamente não quero me desfazer dela agora só para responder a essa questão.

A boca de Shuei se esticou em um sorriso levemente fatalista, mas também havia ternura no seu olhar.

— Essa é a sua resposta.

terça-feira, 10 de abril de 2018

Paredes

Deitada na cama, com a nuca apoiada no travesseiro, era possível olhar em volta, analisando os poucos espaços ainda cinza nas paredes à sua volta. A pintura mal feita, que, anos atrás, dominava o ambiente já estava coberto de histórias, lembranças e memórias em forma de móveis, papel colado, desenhos, quadros, fotos.
    Ao fundo, em um dos cantos, ficava uma estante com uma dúzia de prateleiras, onde ela guardava todos os livros que lera. Eram décadas de leitura, empilhados, enfiados nos cantos, deitados nos vãos entre os livros e a prateleira superior, alguns estavam parcialmente para fora das prateleiras, formando estruturas em balanço, suportadas por uma involuntária lógica de empilhamento. Ocupando todo canto possível do móvel, eles começaram a se acumular no chão em volta. Livros empilhados viraram um criado-mudo improvisado, viravam pequenos aparadores, como o que completava a parede do fundo. Sobre esse aparador, pequenos enfeites, miudezas que fora acumulando pelos anos. Pequenas lembranças de quando era criança, o relógio que ganhara do avô, o primeiro colar de pérolas e um número considerável de pequenas caixas aveludadas com anéis, brincos, alianças de relacionamentos fracassados.
    Pôsteres e cartões-postais ocupavam o resto da parede, lembranças de vários países que conhecera, fotos suas com as pessoas que ela amava, mapas de cidades turísticas, todos eles se sobrepunham de alguma forma organizados, ao menos na cabeça dela. Sobre eles pequenos ímãs de geladeira estavam colados, por falta de uma geladeira para prendê-los. O ‘charme’ kitsch era bastante evidente nas pequenas miniaturas de locais que muitos apenas sonham em um dia conhecer.
    A parede da esquerda era parcialmente coberta com pastas e mais pastas. Folhas de papel almaço escapavam pelas frestas, cobertos de letras cursivas gordas. Relatórios jamais eram suficientes e o trabalho incessante havia ultrapassado qualquer limite quantitativo. Caixas arquivos davam uma sustentação a mais na base, igualmente cheias de papel. Por cima de uma pilha mais baixa, havia algumas roupas guardadas da época de escola. Uniformes, fantasias das festinhas de carnaval e vestidos de festa junina estavam dobrados um sobre o outro em uma pilha que poderia estar coroada por uma beca, se ela possuísse uma.
    Acima de tudo isso, mais pôsteres e fotos, cobertos em parte por diplomas e certificados acumulados durante uma vida de constante aprimoramento profissional, todos devidamente enquadrados. Já diziam os pais: “Se você não acompanhar o mundo e não estudar, o que você vai ser? Nada?”
    Falando em pais, eles mereciam um lugar de destaque na parede da direita. Sobre a já conhecida miscelânea de coisas coladas e rabiscadas nas paredes, haviam duas lindas fotos. O pai havia um olhar sereno e sagaz, vestia um terno elegante e ostentava um vistoso bigode. Sob o paletó, usava um colete de cujo bolso pendia um relógio prateado. No quadro ao lado, a mãe com uma vontade imensurável de sair da pose para dar um abraço. Havia sido um parto tirar aquela foto. Porém de todas as tentativas, esta foi a imagem perfeita. Um leve problema de foco dava um quê de natural para toda a cena. Ocupando o resto na parede estavam um sem-número de vasos com algumas dezenas de espécies de flores e plantas. Uma pequena trepadeira ousava se enrolar nos pés da estante de livros e procurar um caminho até a pequena janela alta. Era um pequeno vão, mas era o suficiente para atrair as folhas, as vinhas e os olhares para a luz do céu.
    O cheiro agradável das flores ocupava todo o ambiente e dava um certo alento para o caos. Durante as horas de sono, a lavanda que crescia no vaso mais largo deixava o seu perfume para aliviar a espera e a dificuldade de permanecer contando. Porém é cada vez mais raro encontrar a moça deitada na cama. Ela passava noites em claro, levantava e checava um pouco de tudo. Tudo ali era precioso demais para ela para que ela simplesmente negligenciasse cada detalhe.
    Porém, ultimamente, as noites em claro mudaram de tom.     A inquietude tomou conta e os passos se tornavam cada vez mais apressado, seguindo sempre o mesmo caminho, entremeando os montes de coisas. Ela respirava cada vez mais intensamente e seu coração batia dando a toada para esse princípio de loucura noturna. A cada instante a falta de ar a tirava de si mesma e colocava-a como espectadora de sua própria vida, olhando de fora do gradil que ficava onde deveria estar a quarta parede que fecharia a cela quadrada.
    Deitada na cama, com a nuca apoiada no travesseiro, seria possível contemplar tudo aquilo que estava em volta.
    Doeria menos.  

sexta-feira, 16 de março de 2018

Voyer

           De minha janela, vejo o ponto luminoso da janela da menina.

         Todos os dias, às duas da manhã, o ponto se consome em meio à fumaça expelida de forma despretensiosa, quase desleixada, como se pudesse refletir sobre as verdades do mundo e encobrir as que não gostasse.
        A menina não sabe que posso vê-la cá de minha janela, no prédio em frente, o que deixa a minha observação ainda melhor, eu gosto de observar a solidão dela, o jeito que ela pega o cigarro, firme, quase que um beijo raivoso de escrava do vício.
       Se pudesse, eu pagaria pelas suas aflições, pela tristeza dela. Compraria entrada inteira para ver o filme que ela vê todos os dias naquela janela para a rua vazia, que faz ela se emocionar a cada vez que ele termina, se é que termina. Mal sabe a menina (ainda que eu não saiba sua idade) que a cena que ela protagoniza é mais triste do que a sétima arte pode fazer, e ao mesmo tempo tão bonita que eu não resisto a esse voyeurismo egoísta, próximo do sádico, me julgo às vezes.
       Confesso, com certo embaraço, que faço trilha sonora para ela de vez em quando. Ligo o som do computador num volume só para meus ouvidos e encaixando as notas das músicas em cada virada de cabeça que ela dá, a cada respirada profunda olhando a Araucária. Já me peguei desejando que ela não fosse feliz, para que o meu filme sempre tivesse sequência. Soa egoísta, e de fato o é. Mas me sinto ligado à menina triste da janela e ao mundo que ela condena com os olhos.
        Nem mesmo sei a raiz da sua dor, na verdade não importa. Sei que as lágrimas caem e são enxugadas imediatamente, como se aquilo fosse errado. Se ela soubesse a beleza desse momento, talvez chorasse de novo.
    Às duas e meia, a janela se fecha. A luz da menina é quase sempre apagada (possivelmente, a de seu interior também), vejo os contornos do show com a iluminação urbana profusa do centro. No dia que se segue, a menina da janela permanece anônima para mim, talvez até já a tenha visto andando pela avenida, quem sabe. 
       Prefiro assim. A magia se mantém.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O Terapeuta

O homem senta calmamente no divã, aliviado por poder dar um descanso para as pernas depois de um longo dia de trabalho. A doçura do contato com a superfície macia e aveludada do estofado é quase inenarrável e o corpo facilmente coloca de lado por um tempo a memória do toque ríspido da cadeira do ônibus, onde permaneceu pela última hora e meia. Os olhos se dão a liberdade de permanecer fechados por um tempo pois aquele é o lugar seguro. Aquele é o lugar onde ele sente que deve estar.
Porém ao abrir os olhos, o olhar do terapeuta estava já fixo nos seus. Ele observava as pequenas reações, em silêncio. Calculava os pequenos espasmos e as coceiras involuntárias no nariz e no dedo anelar. Não era necessário dizer nada para que o estado de estresse fosse claramente comunicado pelo paciente. Ele era avaliado cuidadosamente. Até seu cheiro era percebido com cuidado pelo nariz bem treinado do terapeuta que, com os dedos e as palmas, pressionava levemente o tórax e captava, como em uma dessas tantas curas esotéricas milagrosas, as vibrações e a energia que emanavam do corpo deitado. Os olhares estavam próximos, como se atravessassem a barreira do que é físico, da simples interpretação vaga da porção de luz que é refletida e se dirige em direção a nós. A conexão era quase que mística, tanto quanto silenciosa.
No início, o homem até se perturbava com essa falta de respostas claras. Com essa falta de respostas. “Talvez aquele outro, que, ao menos demonstrava um pouco mais de calor quando eu chegava, que cumprimentava efusivamente logo na porta, fosse melhor pra mim” era um pensamento bastante recorrente nas primeiras sessões. Porém com o tempo esse silêncio se tornou um elemento essencial em todo esse processo de chegada e início de tratamento. Lá havia, à sua espera, um monge, pleno do vazio de si próprio e pronto para absorver as mazelas e o trazer para perto de seu estado quase divino. Estado esse que era bastante recorrente para a figura do terapeuta.
Por gerações ele era visto quase que como um deus, quando não o efetivamente era. Porém, ao longo do tempo, como tudo o que tem esse caráter imaterial, a figura desse terapeuta foi relegada a um nível rebaixado, sempre afogado pelas novas leis da física, da engenharia, das respostas exatas e precisas, com n casas depois da vírgula. Como se isso importasse para as figuras que vagam por aí, despreocupadas com o reconhecimento. “São coisas mundanas demais para eles,” concluiu por si próprio o paciente.
De fato para eles era suficiente o silêncio. Algo como um silêncio cerimonial, quebrado apenas por manifestações pontuais, quando a intransigência do paciente em interromper abruptamente a sessão passava dos limites. Uma palavra era suficiente para a repreensão. E o silêncio reinava em paz com o paciente novamente entregue às mãos do habilidoso terapeuta que como um psicólogo, arrancava impiedosamente o que dolorosamente guardamos em nosso íntimo.
Não há horário para o fim da sessão. Ela termina quando o terapeuta julga ser conveniente. Após todo o cerimonial, há sempre um abraço forte. O terapeuta abdica de toda sua reserva em relação a si e a seu corpo, deita-se ao lado do paciente – afinal o conforto daquela peça de estofado não deve se restringir apenas a ele – e adormece.
Este período de aconchego se estende por horas até o momento que uma separação, por vezes traumática, é forçada por motivos de força maior, por necessidades intrínsecas à figura e à função deste ser sublime e enigmático: Um pouco de leite, e uma ida rápida à caixa de areia.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Escolhas

Em seus tempos áureos e não tão remotos assim, a cidade do Orgulho brilhava como nenhuma outra. Cotada como uma das dez melhores para se viver, somente pessoas muito seletas conseguiam seu passe para o sonho de um terreno com grama bem aparada ou de um apartamento com vista para suas ruas douradas. 

Os turistas eram escassos, mas não por crise ou falta de interesse. Os orgulhosos - moradores nascidos ou erradicados por lá - passaram anos lutando para que a entrada de pessoas de fora fosse proibida. Depois de diversos plebiscitos fracassados, uma lei de - quase - comum acordo foi estabelecida permitindo que um número restrito de pessoas pudessem visitar a cidade. A verba de fora era importante também, mas ninguém queria admitir. 

Os sortudos que eram premiados com um visto temporário podiam passear por suas ruas de paralelepípedo cor de ouro e vislumbrar casas e lojas impecáveis, desde a pintura recém feita até o polimento do sino de prata que anunciava os visitantes. Tudo brilhava, reluzia. Nada estava fora do lugar. Os moradores tinham muito orgulho de sua cidade. 

Outra particularidade, que sempre chamava a atenção dos turistas, era um ornamento utilizado pelos cidadãos: um colar com várias pequenas bolinhas, de diversos tamanhos, que lembrava muito um terço. 

- Estou te dizendo que cada uma dessas perolazinhas tem seu significado.  O orgulhoso falou enquanto bebericava café quente de uma xícara de ágata perfeitamente ornamentada. 

O repórter olhava intrigado para a pequena bolinha entre seus dedos. Presa a ela seguiam várias outras, formando uma longa corrente cor de ouro velho. O colar era grande o suficiente para dar três voltas no pescoço do rapaz a sua frente. 

- Você está me dizendo que estas pérolas representam as suas escolhas.

- Na verdade são as minhas não-escolhas. 

- Não-escolhas?

- As escolhas que não realizei em prol de outras. 

O repórter acenou enquanto fazia anotações em meio aos rascunhos de seu bloquinho.

- Então vocês guardam estas escolhas que não foram feitas.

- Sim. - Ele respondeu como se fosse algo extremamente obvio. - É sempre importante lembrar o que deixamos para trás. Qual o custo que pagamos e quais as possibilidades que perdemos. 

- Mas não gera um arrependimento constante? Digo - Corrigiu em tempo ao ver a carranca do entrevistado endurecer - você não pode, com o tempo, perceber que fez escolhas não tão acertadas? 

- Talvez. Mas também serve para lembrar do seu potencial. Lembrar de tudo o que você poderia ter sido. 

- Mas não realizou. Saber que teve tantas possibilidades e lembrar delas constantemente é realmente tão necessário assim? 

- Claro. - Ele respondeu em um tom cheio de orgulho e uma pontada de mágoa. - Quanto mais escolhas abandonadas, quanto maior o seu colar, mais prestígio você tem. Faz parte de quem você é. 

- Mais do que as escolhas que você fez? 

- Com toda certeza. - O orgulhoso falou feliz por finalmente o repórter ter parecido entender. Ele sempre soube que as pessoas de fora eram menos capacitadas. 

Enquanto o repórter finalizava suas anotações, o dono do colar passava o dedo por suas contas. Não esperava que as outras pessoas percebessem a importância de se lembrar dos seus sacrifícios. Mas ele não esqueceria. Nenhum. 

Parou em uma conta menor e a encarou. Lembrava o que abandonou com ela. O que ganhou com isso mesmo?

Não fazia ideia. 

Mas também não importava, seu sacrifício estava claro. 


Para ele e para os outros.