quarta-feira, 9 de maio de 2018

Anonimato

O ônibus estava cheio devido ao horário. Todos os assentos estavam ocupados com pessoas e com casacos que respingavam. Poças de água formavam-se dos respingos e da chuva que conseguia encontrar alguma fresta nas janelas precárias do coletivo. Ao menos uma alma bondosa (que ocupava um corpo suficientemente alto) fez a gentileza de fechar a abertura de ventilação do teto. Afinal, mesmo que não houvesse uma tempestade torrencial como essa, o céu realmente não seria uma real atração visual.
A falta de saturação do céu lá fora era claramente refletida no estado de espírito dos que estavam dentro. O dia havia sido difícil, o tempo estava extremamente abafado, a respiração era pesada e, quando não chovia, havia aquele período quente que servia apenas para as poças se transformarem em um bafo quente e insuportável. De fato esse era um clima recorrente naquela região, especialmente no centro da cidade, porém era difícil de ver alguém que houvesse se adaptado e se sentisse confortável com aquela mistura desgostosa de suor e chuva que se espalhava pela pele. A repetição dessa condição durante a semana apenas tornava mais simples de compreender o estado de espírito de todos que se deixavam pesar sobre os bancos, sem fazer o mínimo de esforço para manter um mínimo de compostura.
As muitas paradas, alternadas aos muitos semáforos fechados, criavam um ritmo constante que embalava os passageiros enquanto o ônibus seguia na direção sul da cidade. Seriam cerca de uma hora e meia para chegar ao terminal, onde todos sairiam para tomar cada um seu rumo em outros ônibus.
Após cerca de um terço de caminho andado, o ônibus para em uma estação quase vazia. Um casal entra com passos apressados, num primeiro olhar, fugindo da chuva. Porém nos detalhes era possível ver algo de nervoso. Os dois pararam de frente para a porta olhando para o outro com uma tensão clara no olhar e, depois de um silêncio sacramental, a mão esquerda de um voa até esbofetear impiedosamente a face do outro, em um som curto, abafado e estridente.
Após outro silêncio, conveniente para digerir a cena, começou a gritaria. Entre os "Você não deveria ter feito isso", os xingamentos, as novas tentativas de tapas que terminavam em um agarrando o outro, novos passageiros entravam e se juntavam à plateia silenciosa que não ousava interferir. O ônibus chacoalhava ao longo da avenida alheio a tudo que acontecia dentro, alheio às "verdades" que eram ditas, aos objetos jogados um no outro que se acumulavam ao chão, à violência no olhar e no falar, aos olhares incrédulos de todos os presentes. No final dela havia um grande ponto de ônibus, o último antes da parada final.
Ao abrir das portas, uma pequena multidão rapidamente preencheu todo o espaço disponível no corredor engolindo o casal com seus corpos e roupas molhadas. O cheiro da umidade preencheu o olhar enquanto a centena de rostos genéricos se somavam às dezenas dos anteriormente presentes observando o nada que havia restado.
Nenhuma palavra que foi dita enquanto o ônibus percorria lentamente seu caminho, fazia a volta necessária no terminal para estacionar no sentido contrário para depois tomar todo o caminho de volta.
Ao estacionar, as portas se abriram e como comportas de uma represa e o mar de gente que se apertava em pé se esparramou para fora do coletivo. Eles rapidamente tomaram seus caminhos pelos corredores, passagens subterrâneas e diversas plataformas. Entravam em filas, nas pequenas lojas localizadas por todo o terminal. Junto com a multidão o casal desapareceu tão rapidamente quanto apareceu. O momentâneo silêncio entre a saída apressada dos que estavam em pé e o impeto letárgico dos que estavam sentados de se levantar foi de certa forma estranho. Nenhum deles jamais havia visto estas duas pessoas, que não eram frequentadores quotidianos desta linha. Talvez aparecessem de novo, num dia próximo, para que fosse possível deduzir um desenrolar para todo aquele papelão. Talvez seria possível saber quem são. Seus nomes, de onde vieram, o que faziam da vida, o motivo da briga. Seria divertido poder julgar e apontar um dedo para um culpado.
Talvez, porém eles jamais aparecessem nessa linha novamente. Talvez estivessem resolvendo algum problema na região, ou mesmo na cidade, e não tivessem nenhuma relação com esse trajeto. Permaneceriam para sempre como o casal de loucos que entrou no ônibus enquanto resolvia suas pendências de forma nada civilizada. Permaneceriam para sempre como duas pessoas entre tantos milhões de outros, cujos nomes jamais saberemos. Pode ser que um dia aleatório, depois de tanto tempo entrem no mesmo ônibus, no mesmo horário, de mãos dadas, escolham um assento tomem seu rumo, vestido com o belo traje do anonimato, por trás do qual podemos ser todos um tanto loucos, livremente.

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