quinta-feira, 5 de julho de 2018

Os dois e o muro da casa branca


O papel envelhecido permanecia em suas mãos mesmo não havendo mais luz suficiente para ver a maioria dos detalhes. As bordas já estavam escurecidas e comidas e havia um grande friso, já bastante gasto, com pequenos descascados. Após um silêncio cortado por um suspiro, o olhar buscou o ponto no céu onde brilhava o Sol algumas horas antes, quando o rapaz se pusera sentado no gramado deliciosamente fresco. Só encontrando estrelas, o olhar voltou-se novamente para o papel.
Já fazia tempo que a fotografia não estava mais em seu melhor estado, mas não seria abandonada tão logo. As duas pessoas retratadas, um casal, estavam de pé, lado a lado na frente de uma casa. O homem era alto, com o rosto já um tanto rechonchudo - de fato ele sempre fora assim mesmo durante a infância – com um par de pequenos olhos arredondados apertados entre as bochechas. A mulher, um pouco mais velha, tinha um olhar cansado. Era magra, magra demais para a época, mas depois, quando ganhou um peso, viu a sua antiga magreza virar uma tendência estética. Ela jamais aceitara seu corpo e jamais se perdoaria em ter se deixado ficar como ficou.
Os dois estavam na frente da casa para onde se mudaram logo depois de se casarem. Depois de juntarem dinheiro por anos, conseguiram reformar o imóvel e, para comemorar, pediram para o Cláudio, um primo de segundo grau dela, o único na cidade que tinha uma câmera fotográfica, fazer um retrato com os dois proprietários orgulhosos de sua ‘nova’ casa. Posaram em pé, com os muros branquinhos, novos em folha, em suas costas, com a porta, pintada com um esmalte vermelho maravilhoso, quase toda encoberta por eles. E aí estava a cena.
Já aceitando a falta de condições de observar, ele dobrou a foto, reforçando aquele friso no meio, e a guardou entre a capa e a primeira página de uma agenda que carregava na mochila. Estava tarde e o caminho até a cidade ainda seria longo. Olhou para os lados para ver se ela estava de olho, mas ela já esperava na estrada, arrumando o banco da sua bicicleta para seguir viagem.
Chegando próximo a ela, ele pega a sua bicicleta e ambos seguem em direção à cidade em um ritmo tranquilo. A estrada, bastante iluminada pelo céu estrelado, sempre reservava momentos interessantes para os dois. Sempre que precisavam de um tempo do ritmo urbano, pedalavam até as colinas que ficam a oeste da cidade, para ficarem quietos olhando a amplidão de tudo em volta. Porém nos trajetos, os quase quarenta minutos eram preenchidos por conversas que pareciam intermináveis.
Nesta noite, pelo contrário, os dois pedalavam em silêncio. Ele não estava muito inspirado para começar um diálogo (aquele papo barato que não leva a lugar algum não era muito a praia deles), ela parecia concentrada nos seus pensamentos. A cada tanto, ele olhava para o lado, na esperança de que ela começasse, para que o trajeto continuasse normalmente. Porém ao ver a falta de reação, ele começou a ficar preocupado. Ela era do tipo de pessoa que por vezes está quieta, apenas para bolar aquela pergunta capciosa, e ele não tinha muito pique para algo daquele jeito, naquela hora.
E, para o azar do rapaz, isso era exatamente o que a moça tinha em mente. Na metade do trajeto ela vira pra ele, com uma cara que não dizia nada:
- Mas por que diabos você tem passado todo esses dias com essa foto? Já faz um mês. São seus avós, não?
- Sim, são eles sim. Respondeu ele. Resposta esta seguida por um silêncio sepulcral, que frustrou profundamente a moça.
Era uma pergunta complicada. Realmente fazia um mês que ele carregava a fotografia por todo canto. De quando em quando, ele a pegava de sua agenda e observava em silêncio, como se tentasse achar alguma coisa escondida naquela imagem, igual aqueles livros de suspense que encontram mensagens escondidas em fotografias antigas e isso é o ponto de partida para grandes histórias. Ele simplesmente nunca falava sobre isso, e ela cultivara em si uma curiosidade, que se transformara em inquietação.
Alguns minutos depois, quando já conseguiam ver a silhueta discreta da cidade, ele simplesmente parou de pedalar e ficou para trás, com os pés no chão e o olhar no guidão. Ela, irritada, voltou pedalando e encontrando-se com ele.
- O que acontece com você? Fica aí quieto, não responde as coisas que te pergunto e agora vem com essa história de ficar parando no caminho!
Ela falava alto enquanto lutava pra recuperar o fôlego, tarefa que se tornava mais difícil à medida que ela ficava nervosa com a falta de resposta dele.
- Dá pra falar alguma coisa, nem que seja um “não tô muito afim de falar disso”, heim?


- Sabe. Começou ele, dando alguma esperança para ela.


- DESEMBUCHA, HOMEM DE DEUS!

- Sei lá, sabe… Já foram tantos anos que eles foram embora, e, mês passado me peguei pensando neles pela primeira vez desde então. E estranhei o fato de não ter feito isso antes. Eu gostava tanto deles e simplesmente não sentia saudade deles. Não daquele poético de ‘não sentir saudade por senti-los sempre do meu lado’. Mas do jeito de simplesmente não pensar neles. E isso é estranho.

Veio mais um silêncio sepulcral por alguns instantes, quebrado pelo próprio rapaz, que tentava concluir de alguma forma aquele raciocínio.

- É pra ver se consigo um dia ter saudades deles.

E voltou a pedalar, deixando a menina calada para trás. Ele viria a alcançá-lo alguns quilômetros adiante. Porém dessa vez não quis puxar conversa. Olhava para frente, para ele e de volta para frente. Havia ainda muito para digerir.  


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